Quem é essa mulher
Que canta sempre esse lamento?
Quando Ainda Estou Aqui começa, e você já sabe exatamente o que vai acontecer, depois de tanto estudar sobre o sangue escorrido pelo ralo da ditadura militar brasileira, é impossível não lembrar de Zuzu Angel, outra mulher estoica, forte, que passou anos e anos tentando localizar seu filho Stuart, vivo ou morto. E responsabilizar o regime brasileiro por seu desaparaecimento. Eunice Paiva não mereceu tanta atenção, e o filme que conta sua história só está chegando aos cinemas agora, 53 anos depois da morte de Rubens Paiva, ex-deputado, e seu marido, além de pai de seus cinco filhos.
Quando o livro de seu filho mais novo, Marcelo, saiu, ainda em meio à ditadura, pudemos ter um esboço da tragédia que vitimou a família, no meio da tragédia pessoal de Marcelo Rubens Paiva, contada em detalhes no best-seller Feliz Ano Velho.
Choram Marias e Clarices no solo do Brasil
Também Eunice, como as personagens citadas na obra-prima de João Bosco e Aldir Blanc, teve muito a chorar. Entretanto, no filme de Walter Salles, o rosto crispado de Fernanda Torres nem exibe o pranto que seria concebível a uma esposa, mãe, que vê seu marido sumir em meio a uma ação kafkiana orquestrada pelos doi-codis que o Brasil vomitava no mandato de Médici. Com uma família numerosa para dar conta, Eunice mal tinha tempo de respirar. Se respirar possível fosse. Ainda Estou Aqui mostra, ampliando o sofrimento, as agruras de quem tem que viver superando entraves burocráticos criados por um Estado assassino e covarde que sequer admite o crime que cometeu.
Tudo certo como dois e dois são cinco
Em um Brasil extasiado pela seleção de 1970, com índices de empregabilidade em alta com o advento do milagre econômico, parecia tudo certo para quem não se insurgia contra o regime militar ou se colocava na maré alienante que sempre existe e fortalece sistemas ditatoriais. Enquanto isso, nos porões, nomes como Herzog, Fiel Filho, Stuart Angel e Rubens Paiva eram torturados e assassinados por um aparato repressor sedento de sangue.
Ainda Estou Aqui é delicado quando se permite ser, é feito com cuidado e choca, apesar de tanto que já sabemos sobre os crimes que o golpe de 1964 propiciou. E a trilha, escolhida com tanto esmero, coloca Roberto, Caetano, Gal, Tom Zé, surpreendentemente Juca Chaves, Mutantes e Erasmo, que abre e fecha a história com sua pungente É Preciso Dar Um Jeito, Meu Amigo.
Da mesma forma que soubemos mais de Eunice agora, o grande público só veio tomar conhecimento desta pérola, uma das melhores canções de Erasmo Carlos, há menos de cinco anos, quando, esquecida por aqui, a canção entrou na playlist do conceituado produtor Danger Mouse, o que não nos causa orgulho. Da mesma forma que saímos do cinema envergonhados, machucados, revoltados com tamanha brutalidade. Felizes os países que nunca passaram por uma ditadura. Brasil, nunca mais.
Mas não vou ficar calado
No conforto acomodado como tantos por aí
Se vier o Oscar, será bonito ver a Fernandona receber o que já merecia por Central do Brasil. E Fernandinha, e Selton, todos com atuações magistrais e Walter, e cada um que assinou este filme fundamental para contar um pouco da história recente do Brasil.
Roberto Vieira é radialista, publicitário e lançou seu primeiro livro, No Tempo do Mundo, em 2020. Disponível aqui