Com Açúcar, Com Afeto não é a primeira canção renegada por seu autor. Antes de Chico, Roberto Carlos já havia condenado Quero Que Vá Tudo Pro Inferno a uma condição intermediária: o limbo. Talvez a maior composição roqueira do capixaba, a música da fase em que Roberto integrava a Jovem Guarda e ainda não demonstrava ter desenvolvido o transtorno obsessivo-compulsivo nunca mais foi interpretada por ele, e, pior, tem seus pedidos de regravação reiteradamente negados.
Roberto tem uma doença, Chico, não. Aliás, os dois, que surgiram para o grande público na mesma época, em que florescia a ditadura, tomaram caminhos distintos. Roberto pouco se ocupou do tema, enquanto Chico foi um combatente incansável na defesa da liberdade de expressão e opinião, censurado e exilado.
Por um outro motivo, Kiko Zambianchi se ressente de sua gravação de Hey Jude. A versão para o português nem foi escrita por ele, mas sim por um prolífico Rossini Pinto, responsável por várias outras traduções. Kiko reconhece que cedeu aos apelos da gravadora e colocou voz em uma música com um apelo essencialmente comercial, chegando a pedir desculpas aos fãs dos Beatles pela heresia. A diferença, aqui, é que se trata de uma retratação por uma recriação de um hino mundial e atemporal. A canção dos Beatles permanece ilesa.
O problema maior, e é maior, apesar e até por conta de todo o histórico libertário da obra de Chico Buarque, é que tanto ele, quanto Roberto Carlos, são reincidentes em atitudes arbitrárias no que tange à obra que possuem. Roberto se postou contra seu dedicado biógrafo, Paulo César de Araújo, sufocando, e usando de seu poder, o jornalista que ousou escrever sobre sua vida. Conseguiu a destruição dos livros. A obra encontra-se interditada. Quem quiser ler Roberto Carlos em Detalhes vai precisar usar dos caminhos subterrâneos da pirataria para buscar uma cópia em PDF. Ou vasculhar sebos e pagar caro.
Chico, por sua vez, retirou a autorização para que um espetáculo baseado em sua obra continuasse a ser apresentado, contrariado com ofensas a Dilma Rousseff em cena aberta dentro da obra, ficcional e autoral.
Com Açúcar, Com Afeto representa pouco dentro da colossal obra de Chico. A declaração de que não a cantaria mais para não desagradar às feministas (e há feministas e feministas, cabe a ressalva), dada ao diretor Renato Terra por ocasião da série O Canto Livre de Nara Leão, pouco efeito prático terá. Mas abre um precedente comparável às ondas de cancelamento que vimos acontecer. Ao retratar personagens femininas submissas, Chico fez o reporte de uma era. Ela não deixará de existir com esta tentativa de jogar o passado debaixo do tapete. Chico pode fazer uma releitura de Com Açúcar, Com Afeto mostrando a volta por cima da passiva esposa e exaltando o poder de reinvenção feminina. Pode, se quiser, dada a sua importância, contextualizar sua inspiração e explicar, como fez Paul McCartney em seu novo livro, Letras, a motivação por trás de suas composições. Pode fazer um documentário. São opções. O que quem ama a arte e a liberdade não pode fazer é assentir bovinamente às investidas arbitrárias de um grupo, seja qual for. Qual será a próxima concessão e a canção seguinte a ser silenciada? Mulheres de Atenas? Feijoada Completa? Cotidiano? Chico será proibido de cantar o eu feminino por não ter ‘lugar de fala’?
ROBERTO VIEIRA
Roberto Vieira é diretor da BRio, radialista, publicitário e autor de No Tempo do Mundo - Crônicas de um Locutor que Escreve, disponível para compra em https://amzn.to/2ZGGt09
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Parabéns, Roberto! Mais um belo texto! Não pare! Abraços!