Criança, via jogadores como Serginho entrando em campo vestido de sheik árabe. Fazia parte quitar apostas perdidas pagando algum mico, como também trocas de provocações que eram esquecidas quando, no final do ano, ele, Casagrande e outros iam jogar vestidos de mulher.
Adolescente, no primeiro Corinthians x Palmeiras que presenciei, no Pacaembu, fui apresentado à prática engenhosa mas pouco refinada que a Gaviões havia criado para provocar os rivais: um porquinho era solto no gramado, enquanto a polícia sofria para capturar o suíno, que sofria consideravelmente mais naquele ambiente ensurdecedor.
Neste futebol atual, ditado por empresários e jogadores versados no media-training, muitas vezes me questionei como figuras folclóricas como Dadá, Tulio, Peu, Viola e outros conseguiriam sobreviver sem resvalar nas normas de conduta adotadas e que aposentaram completamente as declarações espontâneas, curiosas e quase sempre divertidas saídas do mais puro suco de Brasil. Sim, o mundo mudou, em muitos casos para melhor, mas se a seleção brasileira pouco representa seu povo, hoje em dia, muito se deve também ao distanciamento do torcedor em relação a jogadores vestidos de forma espalhafatosa, mais preocupados com a aparência e em não afastar seguidores, propostas de publicidade e oportunidades de ascensão. Não é à toa que, mesmo tanto tempo depois de morto, Garrincha ainda é a tradução do mais puro moleque dentro de campo e fora dele. Inconsequente, deu cabo de sua própria vida aprisionado pelo alcoolismo, mas nunca deixou de ganhar um sorriso de cada torcedor brasileiro ao ver uma daquelas imagens tão repetidas de sua dança trajando a 7 do Botafogo. Ninguém cansa de ver nosso Fred Astaire de pernas tortas. Falando para repórteres que o procuravam em casa de calção e chinelos.
Como tudo acontece ao Botafogo, por sinal, em uma partida em que o Glorioso entrou em campo absolutamente desacreditado por conta de suas pipocadas em decisões, o time de John Textor (Mané, seu antigo clube foi comprado por um gringo, acredite) venceu o Palmeiras em seus domínios. Ao final da vitória incontestável, um dos melhores em campo, Igor Jesus foi questionado sobre as pipocas que foram jogadas nele pela torcida rival e que ele, que chegou a pensar em comer, dispensou:
“...em nenhum momento eu quis desmerecer a pipoca do torcedor…”
Igor, como eu, como você, cansou de ver cancelamentos, imagens destruídas por alguma declaração desastrosa ou quebras de contrato e, por via das dúvidas, já foi se desculpando perante a pipoca e o torcedor, que, vá lá, por mais mal-educado que seja, pode ser parte de alguma minoria e eventualmente usá-la para, mesmo assim, ter razão.
Estou lendo A Esquerda Não é Woke, de Susan Neiman, e, não obstante a autora se colocar politicamente como progressista, assinala que as pautas identitárias, apesar de sua aparência esquerdista, foram injetadas pelo espectro direitista, o que deixa fácil entender o motivo pelo qual tantas pessoas se desculpam por alguma atitude espontânea antes mesmo de sequer compreender a razão. O medo. Presente em sociedades totalitárias em que uma denúncia leva à prisão, arbitrária e sem direito a defesa. Susan denuncia o desvio de parte da esquerda de sua luta por condições gerais de melhoria da vida das pessoas, levantando a bandeira da redução da desigualdade de renda, por exemplo, por uma pauta woke policialesca que, com a justificativa de abraçar um setor desfavorecido, toma esse partido para atacar os demais setores. Muito complicado desprezar um saco de pipocas atirado na sua cabeça em um mundo assim.
Felizmente Garrincha não viveu para dar entrevistas no século XXI.
PS.: Antes que me acusem de sentir falta (lá vou eu me justificando) do espetáculo grotesco de porcos e cabeças de porcos sendo jogadas nos coliseus paulistanos, minha repulsa é total por este tipo de ação. Mas que a espontaneidade dos jogadores de futebol daquela época faz falta, não tenho dúvida.
Roberto Vieira é radialista, publicitário e lançou seu primeiro livro, No Tempo do Mundo, em 2020. Disponível aqui