Certamente Renato Russo odiaria saber, quando Será começou a tocar nas rádios, lá em 1984, que apenas 12 anos depois ele começaria a se tornar um ícone messiânico como aqueles que morreram cedo e que figuraram no clipe de Tempo Perdido. Mas será que o menino que criava bandas imaginárias no caderno, com alter-egos e nomes fictícios não levou, freudianamente, o Renato Manfredini a se configurar no Renato Rousseau, Russo e se enfileirar, mesmo que restrito ao cenário brasileiro, a Brian Jones, Janis Joplin, Lennon e etc?

Foi marcante para quem viveu aqueles dias soturnos em que o desfecho esperado da trajetória de Renato, auto-destrutivamente se recusando a cumprir o protocolo de tratamento contra o HIV enquanto mergulhava em episódios de depressão e ingestão de drogas acabou por se anunciar, enquanto o luto se construía, no Brasil inebriado pela febre de consumo e otimismo pós-Plano Real os discos da Legião, e mesmo os solos de RR vendiam à medida em que pousavam na prateleira de CDs das lojas que viviam, sem saber, o ocaso da música comercializada em formatos físicos.

Vi, e ninguém me contou, um semi-analfabeto adquirir não um, mas todos os CDs da carreira de Renato Russo e de sua banda, o que tomou praticamente metade de seu salário de repositor em um comércio da periferia de São Paulo. Mesmo que as letras de Renato soassem a marciano perto da preferência de seu dedicado e novo fã, o pagode meloso e repleto de cornitude do Raça Negra, ele cantava A Via Láctea a plenos pulmões, embevecido com a letra depressiva de quem sofria os efeitos devastadores da AIDS. Era bizarro e comovente. E ali nascia outro Raul Seixas. Com algumas diferenças, entre elas uma básica, que era a falta de estrutura mercadológica para transformar o baiano em campeão de vendagem, pois sua carreira nos anos 1980 vinha em decadência acelerada, enquanto Renato lançava em média um álbum por ano em sua última década.