(divulgação/Globo)


Era junho de 1978. Chegava a primeira TV em cores à minha casa. Comprada em 24 prestações, a Sharp 20” virou, logo, claro, a estrela. Não tinha controle remoto, e, fazia, sem saber, com que nos condicionássemos fisicamente e intelectualmente, em uma época em que tudo exigia um esforço extra. De trocar um canal a adquirir verniz intelectual. Neste mundo, que soa inverossímil para a geração de meu filho, que completa hoje 15 anos, a TV aberta tinha de ser abrangente. Popular a ponto de ter Chacrinha, Barros de Alencar, Bolinha e seus cantores falando de meninas em cadeiras de roda, ciganos falsos que prometiam matar se traídos e ainda transmitir clássicos imortais como Cidadão Kane, Psicose e Casablanca no começo da madrugada. 

Mas a Sharp chegou, mesmo, para a Copa da Argentina. Na minha memória, o punho cerrado de Reinaldo ao marcar o primeiro gol brasileiro naquela edição, contra a Suécia, e o último, inacreditável, de Nelinho, em um chute imponderável aniquilando Zoff e que decretou a vitória, amarga, contra a Itália, na disputa do terceiro lugar. A Copa acabou ali, mas o melhor estava para chegar. O Astro estava no final, e a próxima novela seria a estreia de Gilberto Braga no horário nobre da Globo. Aquele que pegava a audiência cheia do Jornal Nacional e a entregava, plena, para a faixa de shows na sequência. A receita perfeita criada pelos gênios de Boni, Walter Clark e Daniel Filho garantia uma supremacia absurda para a emissora dos Marinho. 

Quando Sônia Braga deixava a prisão, ao som de Amanhã, de Guilherme Arantes, no primeiro capítulo de Dancin’ Days, minha cabeça de criança estava começando a registrar, sem saber, as aulas de uma dramaturgia que vinha concebida por um professor de francês, amante de literatura e da sétima arte que enxergava o Brasil com um olho voltado para sua gente sofrida, suburbana, e outro para sua elite intocável, alheia a este outro mundo, que só encontrava na área de serviço. Não poderia ser diferente: Gilberto vinha de uma classe média carioca, e convivia com as duas realidades. Por uma conjunção destes dois fatores, por intermédio de um meio de comunicação popular, ainda que não popularesco, à época, foi traduzindo o Brasil para quem, como eu, estava chegando agora. Incentivando a ler, e ver bons filmes, dando, aqui e ali, em personagens que eram, em alguns casos, representações dele mesmo, aulas de etiqueta. De boas condutas. De linguagem. De comportamento. De música. De arte, em geral. Gilberto Braga educou minha geração sem ser chato. Foi fino sem ser pedante como sua vilã mais incensada, e com seus heróis críveis, falíveis, humanos, foi granjeando a admiração do público. Sua fase áurea, não por coincidência, se traduz no auge da TV aberta no Brasil. Começa com Escrava Isaura, que conquistou o mundo, e termina com Celebridade, antevendo o surgimento de influencers e de uma comunicação cibernética que nivela por baixo o conteúdo midiático e sepulta o modelo de fazer televisão consagrado a partir da fábrica de sonhos nascida no Jardim Botânico.

A TV de 20”, com aquelas cores vívidas e entrando no mundo dos remediados cariocas a partir da família do personagem de Mario Lago em Dancin’ Days me levou a refletir sobre minha própria existência e ainda provoca traumas, até hoje. O ovo frito na manteiga (onipresente naqueles tempos e servido no mesmo horário da novela) porque o óleo tinha acabado e que tinha a aparência da careca do Mario me fez fugir dessa combinação por décadas. O drama pessoal que vivia enquanto Anos Rebeldes entrava no ar fez com que a carga emocional presente na minissérie se entranhasse de maneira tão forte que até hoje é impossível revê-la sem desassossego. O mesmo se passou com Vale Tudo e Anos Dourados. Ter vivido e convivido com a teledramaturgia de Gilberto Braga me marcou a ponto de construir uma linha do tempo que se mescla com acontecimentos de minha vida, gerando uma memória afetiva que não se produziu com nenhum outro autor. 

A partir de minha experiência pessoal, consigo dimensionar o impacto que a obra de Gilberto Braga deve ter provocado em tantas pessoas. E a partir disso, posso, sem medo de errar, dizer que o Brasil perdeu seu dramaturgo mais importante. Pois trata-se de um país que nunca leu o suficiente para conceder a Machado de Assis a mesma aura que Victor Hugo, Hemingway, Kafka, Cervantes, Dante ou Shakespeare possuem para seus povos. Maciçamente, e afortunadamente, durante algum tempo, o Brasil pode consumir os biscoitos finos que Gilberto fabricava.




ROBERTO VIEIRA

Roberto Vieira é diretor da BRio, radialista, publicitário e autor de No Tempo do Mundo - Crônicas de um Locutor que Escreve, disponível para compra em https://amzn.to/2ZGGt09

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